espelho d'água
Acervo Galeria | Salvador | 2024
Igor Rodrigues encontra
À distância, o inalcançável se namora. Difícil seria amar o que se aproxima e acolher na morada aquilo que se busca.
É importante perceber nas obras de Igor Rodrigues um exercício de tempo, labuta, construção técnica e visual. Sua primeira dimensão é aquela admitida pelo artista quando o mesmo afirma que demorou a se reconhecer como negro. O seu encontro com essa afirmação se deu num contexto de intensas movimentações decorrentes das batalhas perenes de diversos movimentos sociais. No caso, sobretudo do Movimento Negro. Em 2019, quando Rodrigues começou a se perceber e afirmar como artista e como homem negro, estávamos no auge das discussões sobre democracia, representatividade e direitos humanos para pessoas negras e demais minorias políticas. Seu trabalho se desdobra em consonância com movimentos intensos, árduos, belos que antecedem tudo o que vemos aqui e prenunciam o mundo que veremos. Há a confluência de muitos esforços que unem diferentes tempos. Sempre entre distâncias, encantamentos, aproximações e acolhimentos.
Em uma consonância muito íntima com o mundo que ruía e se reerguia à sua volta, Igor Rodrigues acolheu aquilo que nosso entorno lhe apontava como defeito ou empecilho: suas “ondinhas” no cabelo. Os cachos. Ondas de coroas e belezas que sabiamente carregamos. Junto a esse movimento interno, o artista reuniu toda uma pesquisa sobre editoriais de moda. Tal pesquisa ainda hoje se revela no detalhamento técnico, além do realismo e dos sonhos, que suas obras manifestam. A moda também faz parte desse movimento de fazer encantar com o que está distante enquanto quase que na mesma medida pode fazer amar aquilo que se aproxima e quiçá nos levar a acolher o que está na nossa morada.
Essa pesquisa em moda, contudo, não se deu apenas nos editoriais das grandes magazines. Remonta às primeiras referências técnicas do artista: o artesanato. Sua avó Lilita fazia bonecas de sabão. Igor Rodrigues, que desde criança gostou de Arte, teve a partir dela seu primeiro contato com materiais que se desdobram em algo antes impalpável. O fazer manual se revela como força capaz de transformar matéria “bruta” em fonte de encantamentos. A partir dessas experiências, se moldam perspectivas sobre Arte, materiais, causas e efeitos. O trabalho de Rodrigues tem bases em um fazer artístico manual, que se debruça sobre o mundo que vê e responde à visão estimulando-a entre o familiar e o futuro imaginário (desejo). Do ponto de vista técnico, do sabão experimentado e trabalhado por sua avó, Igor Rodrigues encontrou a pintura digital seguida pelo material grafite até desaguar nas materialidades que hoje vemos: tinta óleo, carvão, vidro, areia e naturalmente água.
Desde o entendimento da sua avó como fonte do conhecimento técnico e artístico até os trabalhos que vemos aqui, “é toda a construção de uma vida que está tentando reverberar através do meu trabalho”, afirma o artista. Da infância ao futuro, repito: à distância, o inalcançável se namora. Difícil seria amar o que se aproxima e acolher na morada aquilo que se busca. Igor Rodrigues ensaia tudo isso. O mar no seu trabalho surge como retrato de movimento, liberdade e imensidão. Na mesma medida, distância, encantamento, busca, aproximação e acolhimento. Além das ondas íntimas que se revelaram na sua cabeça, o universo aquático tinha uma distância muito especial: residia em Salvador o mar e nele estavam belas memórias afetivas. E a memória nada mais é do que um sonho por encontrar o que reside nalgum ponto da nossa construção enquanto indivíduos, seres, corações.
Todo esse intenso movimento da sua infância como amante das Artes até sua vida adulta quando se percebeu e se declarou como homem negro e artista, existem diversas camadas sociopolíticas sim mas também individuais, subjetivas. O indivíduo Igor se percebeu e junto com ele o artista se identificou com e ensaiou movimentos. O mundo interno de cada pessoa não está escondido ou recalcado no seu trabalho. O contrário: seu interesse por psicologia e pela subjetividade se revelam gritantes e absolutamente fundamentais para sua ação artística e humana, pessoal. Não podemos esquecer que os padrões de beleza apresentados e discutidos pelas obras de Igor Rodrigues produzem efeitos nas subjetividades. Sobretudo de pessoas negras. Não se pode negar que todo seu trabalho técnico, discursivo e artístico se desdobra em exercícios de autoestima. Tais movimentos têm imenso valor do ponto de vista sociopolítico e cultural. Afinal, nos guiam a perceber o que se enamora. O encantamento estaria de fato no distante? As obras de Igor anseiam por nos levar a amar o que está próximo, aqui, no corpo que lê o texto e visita à exposição ou num corpo próximo a tudo isso. Pintamos, falamos, escrevemos na torcida de que a Arte também seja capaz de fazer-nos acolher na nossa morada (cabeça, coração e casa) aquilo que se busca: o belo. Reconhecendo sobretudo a nobreza do negro livre, imenso, em movimento.
No limite da terra, no azul que nos habita, banhamos e trazemos crespos cachos que sussurram o marulho. Temos ondas na cabeça e carregamos, com leveza, o mar.
João Victor Guimarães,
outono e primavera de 2024
















